terça-feira, 6 de outubro de 2009

Partilhando texto- Ler devia ser proibido



Olá,

Vamos ler e descobrir o quanto a autora nos convida de forma inusitada a formar leitores e leitoras????





Ler devia ser proibido

Guiomar de Grammon.
Ao pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido.
Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madame Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.
Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, pode estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?
É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da alcova... Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um.Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos.Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos... A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.
Guiomar de Grammon, In: PRADO, J. & CONDINI, P. (Orgs.). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro - Argus, 1999. pgs.71-73.

6 comentários:

  1. Que ponto de vista hein? Achei um tanto ironico na realidade, mas muito, muito interessante mesmo!
    Visto por esse ângulo, a leitura realmente poderia ser considerada perigoso, principalmente pelos dententores de poder. Contudo é obvio, explicito no texto, o quanto a leitura humaniza o homem. O faz ciente de si mesmo, e isso para mim, não há dinheiro que compre, ou poder que oprima.
    Mas é um 'texto a se pensar..' :)

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  2. Olá Verônica,
    Acertou quando percebeu a ironia da autora para informar e fundamentar o poder da leitura e porque muitos que podem de fato implementar politicas públicas de leitura e do livro não fazem por terem consciência do quanto o poder adivindo dela, é 'revolucionário e transformador'.
    Abraços,
    Ana Lúcia

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  3. É, realmente professora, algo MUITO perigoso.

    Lembrei da prova. Aquele texto que fala do uso da 'linguagem retórica' feito por homens que a dominam, e que a usam para persuadir e ludibriar a outros.

    Eu vi que mesmo sendo textos totalmente distintos e colocados em situações diferentes, se encaixam.
    Pois o dois exibem uma situação problema, onde para os homens 'poderosos', é mais conveniente manter o povo na ignorancia, de maneira que não possam ser ameaçados.

    Beijos,
    Vell :)

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  4. Hummmm, esta minha aluna tem lido cada dia de forma mais 'eficaz'....; está percebendo os implícitos e o poder da leitura, fazendo alusões a outros textos e interagindo com eles...
    Parabéns!!!
    Abraço afetuoso,
    Ana Lúcia

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  5. Aaaaaaah! Obrigada professora!

    Pois é, com a construção do memorial eu percebi isso, que quanto mais se lê, mais se sabe, mais se domina, e fica mais fácil interagir com os textos, e com as palavras.

    Suas aulas tem ajudado muito também, obrigada!

    Grande abraço!
    Verônica

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  6. Obrigada mesmo pelo carinho. Se a turma toda já tivesse consciência disso eu já teria atingido meu objetivo, mas continuo esperançosa...
    Abraço,
    Ana Lúcia

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