quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Texto - Presa pela borboleta



Olá pessoal,


Vamos realizar antecipações de leitura ????

Pelo título do texto você diria que o mesmo fala de quê???!!!


Presa pela borboleta

Ana Lúcia Gomes da Silva *


Como nos diz com sapiência Affonso Romano de Sannt’Ana (2001)[1], “tudo é leitura, tudo é decifração. Ou não. Depende de quem lê”. E foi lendo cotidianamente o caos, os olhares, as caras e bocas, os corpos, os rostos anônimos ou não, que me dei conta, como que por um choque, e que choque, que estava literalmente impedida de dar sequer mais um passo adiante.
Estava presa, acorrentada, fragilizada, corpo tenso, disciplinado, esmagado, imóvel e sem perspectiva de saída daquela situação vexatória, dolorida, vergonhosa, a qual era submetida. Presa pela borboleta. Incrível, uma borboleta?!
Sim, a borboleta do ônibus, a catraca. Não tinha espaço algum para colocar o pé, pé não, o dedo, um mínimo de matéria corporeificada para passar além da borboleta. Fiquei então ali, suspensa de mim, experienciando o dissabor do caos, da falta de qualidade, de decência, de humanidade e tantos outros vocábulos que tão bem caracterizariam o transporte coletivo de Salvador - cidade bela, mágica, com sons e gingados mil. Também com cores e nuances que foram perfilando-se à minha frente numa leitura com cores densas, fortes, misturadas aos rostos abatidos, corpos espremidos, braços tensos e rijos segurando com força os suportes das poltronas, dos canos de ferro que se estendem ao alto,no teto do ônibus, enquanto a solidariedade vai se fazendo presente silenciosamente e em rede. Tomam nossas bolsas, livros, quaisquer outros apetrechos e colocam em seus colos.
Quem? Os que tiveram o privilégio de encontrar um lugar vago para sentarem-se.
Os corpos rijos, retos, espremidos dos que estão em pé, vão sendo sacolejados a cada curva, freio, parada...É dolorido chegar ao destino. Parece uma missão impossível. Mas teimosamente, heroicamente chegamos: mulheres, homens, idosos, crianças...
Questiono: que tal nos indignarmos juntamente com todos que têm fome de justiça social, tratamento digno, transporte de qualidade, confortável e com preço acessível? Por que essa situação perdura?!!!
É preciso deixar ecoar nossas vozes, fazer valer nossos direitos, dar visibilidade a cada ser humano que cotidianamente, faz a Bahia “ melhor”, mais “feliz”, “mais igualitária”. Pra quem? Ás custas de quem?!
Uma professora amiga minha, sai do Saboeiro ( bairro de Salvador localizado após o Cabula), há mais de 18 anos, desce a Paralela e pega o ônibus para dar 40 horas de aula na Ribeira.(professora do ensino fundamental de uma turma de alunos com necessidades especiais) E diz: “vai começar a minha via crucis”. Tombos, esfregões, apertos, odores exalando, náuseas, marmita trepidando nas mãos que tentam segurar a comida, os livros e ainda realizar o malabarismo de corpo para equilibrar-se. Sentar?!!! Nunca registrou esse privilégio nesses longos anos.
Dia após dia, durante quase vinte anos, e ainda não registrou mudanças no transporte coletivo de Salvador. E a volta para casa após o dia inteiro dando aulas?!! Sem comentários!!!!!Não precisamos dizer mais nada. Aliás, precisamos dizer muito MAIS todos os dias. Lendo e relendo o caos, se constrói uma nova ordem, se a tarefa for em rede. Leitura em rede, textos lidos e produzidos em rede, vozes coletivas e visibilizadas, estudantes, professores/as motoristas, passageiros/as, crianças, idosos/as, cada UM/UMA, que forma esse grande texto social tão marcado pelos descuidos de todas as formas, desafetos, desigualdades....
A paráfrase do ditado popular poderá ser real se o quisermos “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, mas se JUNTAR o bicho foge”...Somamos mais de um milhão de pessoas que utilizam diariamente os transportes coletivos de Salvador. Podemos fazer a diferença para modificar esse quadro crônico desolador.
Vamos, pois, ser soltos/as das “borboletas coletivas” que faz de cada dia do baiano/a uma temeridade angustiante e perversa. Demasiadamente perversa.
A leitura certamente será outra: da cidade, dos baianos/as, do transporte, dos empresários/as, dos políticos/as e de todos os segmentos sociais.
Por isso mesmo Guiomar Grammont, ( 1999,p.1), afirma :

Ler devia ser proibido [...] acorda os homens/mulheres[2] para as realidades impossíveis, tornando-os/as incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. [...] A criança que ler poderá tornar-se um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzindo a crer que tudo pode ser de outra forma.

E com certeza a realidade pode ser de outras e outras formas, outros contornos e possibilidades, pois o poder advindo da leitura é transformador, desestruturante, inebriador, revolucionário, demasiadamente político, intencional, e traz sentidos plurais.
Convido a todos/todas para que leiamos, pois, com todos os poros, olhares, corpos.....E escrevamos novos textos em novos contextos.

· Professora UNEB/IV. Doutoranda em Educação pela UFBA.

Salvador, 1/06/06. NOTA- publicado em junho 2006 na revista eletrônica http://www.espiando.com.br/ na coluna de Greice Rago(Na pista do turista).
[1] Cf. Ler o mundo. Disponível em leiabrasil.com.br.Acesso em março 2001.
[2] Grifo nosso para leitora na epígrafe e mulheres na citação de Guiomar. Para cf. ler A formação do leitor: pontos de vista. RJ: Argus, 1999.

2 comentários:

  1. Ana, com TODO respeito me responda uma coisa, você é normal?
    Professora o que é isso?? Estou perplexa aqui!
    você conseguiu fazer de uma borbelata um texto totalmente argumentativo e revolucionário.

    Achei que a borboleta casou perfeitamente, tanto
    relacionada a "borboleta" do ônibus, quanto ao caos, até por que ela é o simbolo da Teoria do Caos.

    Mas com relação ao texto.. Nossa!
    Muito bom, muito mesmo, muito verdadeiro, e muito ligado ao nosso cotidiano, passei 4 anos pegando ônibus para chegar a escola, a volta era sempre pior.. Mas já tinha me acostumado mesmo.. :)

    Ana, parabéns! Precisamos de pessoas como você, que saibam propagar idéias e ideais!

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  2. Muito interessante o texto, no primeiro momento fiquei aflita preocupada com a borboleta a imaginação voou longe,continuei lendo e descobrir que eram características dos transportes coletivos,onde o sofrimento dá espaço à solidariedade e muitos ainda mostram que são humanos apesar do caos.

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